quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Pizza de Kibe





É interessante como algumas coisas se perdem no tempo. Meu avô deve ter chegado por aqui em terras brasileiras em meados da primeira década do século 20. Vinha do Líbano, ao que se sabe com 16 anos e acompanhado de um primo, em verdade o destino era a América, mas por alguns revezes que jamais saberei, acabou desembarcando no litoral de São Paulo.

O jovem libanês ou turco como era conhecido, certamente passou por poucas e boas, basta pensar em Oriente e Ocidente para depreender que essa migração solitária e precoce foi dura, mas não o suficiente para desencorajar o garoto.

Existe um hiato nessa história, o período em que ele se estabelece na cidade de Santo André no ABC paulista, até conhecer a minha avó.

A moçoila italiana que casou-se com o libanês e atravessou todas as dificuldades que o início do século impunha. Trabalhou por uma vida em uma tecelagem, indicativo da industrialização no "viveiro industrial" que a cidade se transformava.

Alimentou seus oito filhos, inclusive amamentando os mais novos no exíguo intervalo do almoço. Como se vê as coisas foram alicerçadas tijolo á tijolo, unidos na dignidade forjada em muito trabalho.

Aos domingos, apesar da dureza, além dos dez ACHUI ("irmão de" Jeshua em hebraico antigo) vinham compartilhar da pobreza, ou melhor da alegria e da riqueza de caráter da grande família, os primos e alguns parentes que desfrutavam da pasta da nona e de uma única garrafa de vinho e em algumas vezes um pedaço de cordeiro assado.Há quem diga que o cacho de banana ficava suspenso por sobre a mesa e assim garantia um fruto para cada um.

Assim, cresceram os descendentes sem sapatos para todos, dividindo o uniforme escolar, mas sem nunca abandonar a escola, enfim devidamente alfabetizados.

O velho Kibe atravessou a vida, ou melhor as ruas da cidade como Mascate vendendo enxovais e artigos de armarinho, pode-se afirmar que seria bem sucedido se não fosse por um detalhe: o vício lhe consumia todas as reservas. Passava noites em mesas de jogos, mas ainda sim a decência estava acima de qualquer coisa.

Morreu com todos os dentes na boca sem nunca usar uma escova, apenas esfregando sabão de côco.

Minha avó, a Pizza de olhos azulinhos e birote bem penteado, guardava algum ressentimento do velho Kibe dificultando que ele transmitisse a sua cultura, as histórias das mil e uma noites para seus meninos.

Contudo, ao que parece a primogênita da família guarda alguns documentos e lembranças que juntas formam um belo "mosaico" (herança das mil e uma noites rsrsrsrs). Esse arquivo vivo de noventa anos é a prova contundente de que a inusitada Pizza de Kibe dá certo.

Bom,a família cresceu,multiplicou-se cada um a seu modo conquistou seu espaço;engenheiros, médicos,jornalistas,administradores,advogados professores e toda sorte de profissionais.

Quanto a árdua jornada do Kibe e da Pizza estabelecida lá atrás, foi dando lugar ao conforto  para aqueles que chegaram até aqui.

A mim, sobraram raras lembranças, algumas enuviadas já que era muito criança quando ele, o Kibe se foi, mas o bigodinho talhado a Rodolfo Valentino, olhos negros profundos e um terno escuro acompanhado de um chapéu são coisas que me marcaram. Me lembro, com clareza do meu avô pegando minhas mãozinhas e me levando ao pipoqueiro da praçinha onde morava.


É... a vida não foi um "mar de babaganuche ou berinjela a parmegiana".